Deixo-vos com esta entrevista interessante que descobri na Revista Ípsilon sobre o arquitecto Marcos Cruz, premiado pelo Royal Institute of British Architects (RIBA) para a Outstanding PhD Thesis 2008.
Vamos poder vestir os nossos edifícios?
A arquitectura contemporânea "é fria". A arquitectura contemporânea "falhou o corpo". Se isso não tivesse acontecido, talvez hoje já tivéssemos um envolvimento diferente e mais intenso com ela. Poderíamos, quem sabe, ter paredes de látex que funcionariam como fatos, com sensores que nos permitiriam comunicar uns com os outros à distância. "A pessoa podia sentar-se dentro dessa pele hipersensível. E vestir a arquitectura tornar-se-ia um acto literal", afirma Marcos Cruz.
Foi destas ideias que este arquitecto português a viver e a trabalhar em Londres partiu para a tese de doutoramento que lhe valeu o prémio do Royal Institute of British Architects (RIBA) para a Outstanding PhD Thesis 2008. Uma tese a que chamou The Inhabitable Flesh of Architecture (o corpo habitável da arquitectura).
"Muita da arquitectura hoje não é feita pensando em quem a usa e a vive. É feita para agradar a arquitectos e para alimentar todo um discurso montado dentro das academias, e que é muito auto-referencial", diz Marcos Cruz, em conversa com o P2, durante umas curtas férias de Natal no Porto, cidade onde cresceu e onde estudou arquitectura.
Na mesa à nossa frente está uma cópia da tese, cheia de imagens, algumas desenhadas por Marcos, outras de peças de artistas plásticos que trabalharam massas, formas mais ou menos disformes, matérias orgânicas. Marcos, que propôs que a conversa decorresse na Casa da Música, vai enumerando as suas referências e fala de eXistenZ, de David Cronenberg, ou Coma, de Michael Crichton, de Barbarella, de pintores como Bosch e Bruegel, de artistas plásticos como Louise Bourgeois ou a francesa Orlan, que usa cirurgias plásticas para alterar o próprio corpo.
"Não sou 'sizesco'"
São imagens de objectos cheios, maleáveis, mutantes, viscosos, viscerais. Não há aqui lugar para brancos, para linhas puras. "Não é uma coincidência que num país com tanto caos como Portugal tenha havido essa necessidade do branco, das linhas puras", diz. Mas ele nunca se identificou com isso. "Já não sou dessa geração, e essa é uma das razões porque não me considero 'sizesco', ainda que o [arquitecto Álvaro] Siza tenha sido uma referência importante enquanto estudava. O meu Portugal já não era esse Portugal caótico, por isso não conseguia sentir-me parte dos produtos brancos da arquitectura portuguesa".
Fez um caminho sempre para mais longe desse universo. E encontrou o que procurava quando foi para a Escola de Arquitectura Bartlett, em Londres, onde hoje dá aulas. "A Bartlett é uma das poucas escolas onde se faz arquitectura experimental. Preparamos os alunos para terem uma mentalidade inovadora". Para quem lá anda, "a arquitectura não tem limites, está toda por descobrir".
Começou a interessar-se pela ideia da "flesh". "Há uma metáfora que os arquitectos usam que é a da pele. Os edifícios têm pele. Mas é uma pele plana, sem espessura, sem profundidade. Muita da arquitectura comercial que se faz é uma chapa-quatro de pisos com uma pele bonita à volta. Não é mais do que uma membrana superficial que nos deixa frios, indiferentes".
Marcos procurava algo mais profundo, e a palavra "flesh" surgiu-lhe como a ideal. "Não é 'body' nem 'meat', é uma palavra que pode ter um sentido espiritual, metafórico, biológico".
Mas mesmo numa escola com as características da Bartlett, os seus trabalhos causaram algum desconforto. "As pessoas olhavam com cepticismo para as minhas maquetas em látex e diziam 'isto é muito estranho, é muito feio'. Mas não era o lado estético que ali me interessava, era poder trabalhar com uma arquitectura que era flexível". Era, para ele, uma forma de ultrapassar "a arquitectura à nossa volta, que é muito dura, muito estática".
Ao contrário de outras áreas, como as artes plásticas, por exemplo, que foram ao ponto de "remover a questão do belo", na arquitectura não houve um momento de ruptura, afirma. "Nas escolas em que estudei, aqui, havia professores que diziam 'para quê essa vanguarda toda, se continuamos a fazer como os romanos?'. Eu tinha uma sensação de claustrofobia criativa brutal. Podíamos de facto continuar a fazer o que os romanos faziam porque já estava tudo inventado".
A esta espécie de paralisia soma-se, por razões sociais, uma perda de funções da arquitectura. "Hoje já não precisamos de um espaço arquitectónico para comunicar; a arquitectura já não carrega consigo a memória necessária para a sociedade continuar; e já nem sequer é a carapaça de protecção mais importante que temos - um cartão de crédito pode dar-nos mais segurança do que um edifício".
O corpo ciborguiano
É preciso, por tudo isto, que a arquitectura encontre um novo sentido. Para Marcos Cruz isso passa pela relação com o corpo. Um corpo que descreve como "ciborguiano".
A primeira parte da tese de doutoramento traça a evolução do corpo ao longo da História - do clássico ao moderno, passando pelo grotesco e o burguês. E o que Marcos defende é que o corpo grotesco medieval - "que é deformado, bizarro, com uma pele porosa" - é o que mais tem pontos de contacto com o corpo ciborguiano de hoje. São ambos corpos que fascinam ao mesmo tempo que repugnam.
"Há no corpo contemporâneo um lado estranho, imprevisível, que nós aceitamos e que há 20 ou 30 anos não aceitaríamos. Nas artes plásticas existe um mundo imenso de artistas que o deformam, manipulam, misturam com outros corpos, com animais, vão para além dos limites da nossa pele e da nossa anatomia". Em arquitectura, o que se está a tentar fazer é ainda muito pouco. Marcos Cruz reuniu alguns dos exemplos mais vanguardistas no número de Novembro/Dezembro 2008 da revista Architectural Design, que foi convidado a editar. Chamou-lhe Neoplasmatic Design e, enquanto passa as páginas da revista, com um evidente entusiasmo, explica porquê. "O neoplasma é um tumor, cresce gerindo-se pelas suas próprias regras". Fascinou-o a variedade de neoplasmas artificiais (synthetic neoplasms) - termo por ele inventado - encontrados nas artes plásticas, e, em particular, o neoplasma do filme eXistenZ, que se torna vivo ao ser colocado na coluna vertebral dos jogadores.
Mas ao mesmo tempo que foi mergulhando cada vez mais neste universo ciborguiano, sonhando com o uso de pele artificial e com edifícios com paredes de látex que, em vez de separarem as pessoas, permitem-lhes comunicar, Marcos foi também sentindo que ainda faltava alguma humanidade a todo este mundo. Foi por isso que achou necessário olhar para certos edifícios do nosso passado mais recente que demonstravam uma relação especial com o corpo. Decidiu reler a história da arquitectura do século XX de uma nova forma e encontrou exemplos importantes Domenech i Montaner, Alison and Peter Smithsons, Charles Moore, Rudolf Schindler e Richard Neutra, Jorn Utzon, e também Le Corbusier (interessaram-lhe, por exemplo, os confessionários à escala humana da igreja de Ronchamp).
Um edifício "vivo"
Reconhece que tem ainda poucas oportunidades de pôr em prática a arquitectura que quer fazer. Uma dessas ocasiões surgiu com a construção, em 2003, em Graz, na Áustria, do edifício Kunsthaus, também conhecido como the friendly alien - um projecto de Peter Cook e Colin Fournier do qual fez parte na fase de concurso. A cobertura em acrílico, que tem por baixo uma membrana em borracha, é mediatizada, e pode ser usada para passar filmes, por exemplo. O projecto inicial era mais ambicioso, era ter uma cobertura flexível e fazer com que o edifício fosse "quase um ser vivo" que se movesse como os bancos de corais. A tecnologia disponível na altura não permitiu ir tão longe, e o projecto teve que ser adaptado à realidade.
O mesmo aconteceu em Lisboa, quando Marcos e o seu sócio Marjan Coletti (conheceram-se na Bartlett e juntos formam o atelier marcosandmarjan) foram convidados a desenhar o pavilhão da Feira do Livro, em 2005. "Fizemos imensos projectos mais arrojados e complexos, até percebermos que havia 500 mil euros para gastar na feira inteira. Tivemos que refazer o projecto numa noite e trabalhar com meios primitivos - um edifício sem fundações, uma estrutura interna de andaimes - e tentar mesmo assim fazer uma arquitectura que fosse experiencial, que tivesse algo de descoberta." O resultado foi um edifício vermelho, assimétrico, como uma nave espacial que tivesse aterrado no topo do Parque Eduardo VII.
A higiene, o tacto e a visão
O futuro está aí, e Marcos Cruz acredita que o que hoje é sonho poderá vir, mais cedo ou mais tarde, a tornar-se realidade, ainda que formalizado de uma maneira diferente do que imaginado hoje. "A visão foi o grande meio de comunicação do século XX. O tacto e a audição, que são muito importantes no espaço arquitectónico foram rejeitados". Isto tem a ver, acredita, com uma "estética da higiene" que surge no final do século XIX, início do século XX, por razões de saúde pública, e que os arquitectos aproveitam. "Dizem 'isto é um grande momento para demonstrar que, se tirarmos tudo das paredes e tornarmos o espaço minimal e ascético, estamos a torná-lo mais saudável'".
Como a sociedade não estava preparada para isso, tinha que ser "educada". O branco e o minimal foram associados à seriedade e à exigência intelectual, enquanto "o material foi desprezado". Todo o trabalho de Marcos Cruz é uma rejeição destes "dogmas". "É uma resposta a um sítio onde me eduquei e onde cresci e é uma grande crítica a certo tipo de dogmas que me incutiram como arquitecto e dos quais muitos arquitectos nunca vão conseguir livrar-se ao longo da vida, porque nem sequer têm tempo para os questionar. O traço claro, o gesto forte que explica tudo é um dogma absurdo que vem do século XIX".
Espera que o futuro seja diferente. E com as suas experiências não está a tentar discutir o que é que é mais ou menos bonito. O que lhe interessa são outras perguntas. Por exemplo: "Será que há uma arquitectura que se pode viver mais pelo tacto do que pela visão?". E, já agora, que se pode vestir?
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